A musiquinha irritante do alarme do celular nem o incomodou. Ele saltou da cama já no primeiro toque. Estava ansioso, estava feliz, estava cheio de esperanças. Era o seu primeiro dia no novo trabalho! Quem diria que ele seria aceito tão facilmente quando outras pessoas, seus colegas de faculdade, sofriam tanto para conseguir uma vaga de professor. E, ainda por cima, nem era em escola pública (ele ouvia rumores de que ninguém conseguia dar aulas em escola pública porque era muito perigoso). Não, o seu currículo havia sido aceito numa escola particular, perto de sua casa. Ele lecionaria português para o Ensino Médio. Ensino Médio! Puxa, que bom que não era para o Ensino Fundamental! Diziam que as quintas-séries eram o inferno na terra...
Tinha poucos minutos para se aprontar e para tomar seu café da manhã. E durante esse tempinho ainda se preocupou em repassar sua aula de literatura que continuaria a matéria do professor que substituira. Pensou mil coisas sobre como começar o primeiro dia, a primeira aula, a primeira turma.
Chegou à escola. A diretora o recebeu com uma cara de desprezo. Apresentou-o aos outros docentes. Cumprimentaram-no desanimados e com olhares indecisamente invejosos: que brilho empolgante ele resplandecia! Era jovem, cheio de expectativas e de ideias. “Bem-vindo”, disse um professor ao canto da sala, sem levantar o rosto do jornal que lia. “Oi”, disse uma professora com mais ou menos a sua idade, mas sem empolgação com o colega. Uma velha de cabelos avermelhados, com cara de fumante inveterada, segurando não uma xícara, mas uma caneca de café preto, meio que rosnou mostrando os dentes amarelados e disse algo imperceptível e desanimador. Os outros não disseram nada ou simplesmente olharam desanimados.
A turma do segundo ano foi a primeira e a síntese de todo o resto do seu dia. Moças e rapazes coloridos fitavam-no com curiosidade. Fez sucesso com umas das moças que se interessaram pela beleza do professor novo. Isso o assustou. Mas se apresentou, falou um pouco sobre o curso que fizera, sobre as coisas de que gostava, sobre a paixão pela língua... Mas, enquanto falava, começou a notar que as pessoas estavam cochichando e que algumas até começaram a rir... As meninas falavam da sua bunda. Os rapazes discutiam sua masculinidade. Não entendeu direito. Perguntou se estava tudo bem, se eles tinham alguma pergunta e tentou encaixar um bate-papo quebra-gelo para conhecê-los um pouco mais. Todos lhe responderam às perguntas com monossílabos e seus semblantes não demonstravam nem um pouco de interesse. Exceto as meninas que se lhe insinuavam.
Percebeu de cara que iniciar a aula que tinha preparado para falar do Modernismo seria um erro letal para o seu relacionamento com aquela turma. Aproveitou-se da “simpatia” de uma aluna e lhe perguntou se ela gostava de algum livro. Ela disse que sim, mas ele não conhecia histórias de vampiros diferentes da de Bram Stoker. Perguntou a um rapaz que estava próximo num grupo se ele conhecia algum livro bacana: “Professor, eu li o mesmo livro da Luana...”. Alguém do fundão gritou “Baitola!”. O professor aproveitou e perguntou ao engraçadinho o que ele havia lido. “Nunca terminei um livro” foi a resposta. “Bom, pelo menos alguém lê alguma coisa”, pensou.
Com mais da metade da aula perdida, ele já não sabia o que fazer para introduzir a matéria. Sentia-se comido vivo pelos alunos que não tinham ideia do que queriam. Mas alguém lhe perguntou sobre o acordo ortográfico de que tanto falavam na TV. E alguém imediatamente disse: “Essa merda é só para complicar. Se a gente tem o presente, o futuro e o passado, para que inventar o tal do pretérito perfeito?”. Quis chorar. Alguém disse: “Minha tia advogada falou que agora a crase não existe mais. Que bom!”.
Tentou não se aprofundar nessa discussão inútil, esboçou uma explicação, mas foi interrompido abruptamente por alguém, que o interrogou sem se dar o trabalho de levantar a mão antes para pedir permissão: “Ei, profe, esse negócio de crase não serve para nada. Acho que seria melhor tirar isso do livro e pronto... A gente não precisamos aprender isso.”
O dia seguiu seu curso sem mudar em nada. Toda sala parecia a mesma. Todos os alunos pareciam iguais: coloridos metidos a valentões, coloridos sensíveis e coloridas decotadas. Um mês inteiro se passou assim.
A musiquinha irritante do celular despertando parecia mais insistente agora do que nunca, mas ele não quis se levantar. E agora?
Escrevi esse texto em parceria com o Evandro. E tenho certeza de que, como nós, muitas das pessoas que decidiram se dedicar ao magistério já passaram por esse tipo de dúvida.